29.11.02

BICHO SOLTO


Outubro, num boca livre no centro da cidade:

- Porra!!! O Filme tá bombando né!? Lá for a e o caralho…
- É mas aê é só Meirelles… Meirelles…
(…)
- Nesse bonde do cinema tem muito filho da puta! Cê já assistiu “Pixote”? Tem que se ligar hein!?
- Deus me livre bicho…

Dai uma das cabeças do evento chega pra mim (e só pra mim) e diz:

- Você não pode fazer isso!!! A direção toda da BR tá aqui!!!
- Bah! Se eles queimam petróleo porque eu não posso queimar maconha!?



Intervenções urbanas, instalações e galerias… A vida dá muitas voltas, ninguém me avisou que aquele cara que tava clicando o Seu Jorge (com a camiseta do greenpeace) era o Vik Muniz, aquele fotógrafo que faz retratos de açucar, macarrão e afins e teve presente na maioria das conversas sobre arte contemporânea que tive recentemente com amigas universitárias e artistas plásticas. Sempre tem o suficiente por perto pra encher uma sala de aula. Bem, ao que parece o Vik cruzou com o Seu Jorge no Baixo Gávea e convidou-o para fazer uma sessão de fotos, vai ver ele o achou parecido com o cara que faz o “bandido do bem” em CDD. Ninguém me avisou que era o cara, portanto a única comunicação que rolou foi mais ou menos assim.

- Maneiro!!! Você também usa Nikon!!!

Papo de três semanas atrás depois de fazer umas filmagens pro documentário da Toscographics “Quebrando tudo” sobre o Hermeto Paschoal eu e o Aori acabamos num desses happy hours do centro conhecendo a Angel, gatinha e fã do Planet Hemp. Como o Planet ia se apresentar na barra naqueles dias decidimos armar com a mina um “dia de princesa”, no esquema daqueles quadros bregas que passam na TV aos Domingos. Iamos pegar uma van no Brooklyn, digo, no Catete com o pessoal da banda e ir direto pro camarim, encher a cara e cabeça e assistir tudo do palco. Pimpin’n’Playin’. Acontece que por problemas de comunicação e sequelas não consegui achar a mina, nos atrasamos e acabamos perdendo a van. Como não estávamos afim de encarar uma viagem de ônibus sentido Zona Oeste pra nos acovelarmos com milhares de pitboys emaconhados decidimos ficar pela Lapa. Foi quando cruzamos com essas duas gatinhas:

- Tamos indo ver a Tati Quebra Barraco lá na Mineira!!!

Eu já tinha visto um show da Tati quando trabalhei nas filmagens do “Febre de Funk”, mas era matinê e num clube do asfalto, longe de qualquer baile funk de comunidade. O morro da mineira fica lá pelos lados do Catumbi e fez notícia ano passado, quando declarou guerra contra o morro da Coroa e transformou a tijuca numa praça de guerra com toque de recolher e o caralho. Já tinha ouvido várias histórias de perrengues nas idas ou voltas desse baile, mas quem as contávam eram um ou outro idiota do meu prédio metido a bandido. E se tem uma coisa que neguinho não respeita é playboy metido a bandido. Com viciado é diferente, viciado banca o babado né!? Então topei na hora invadir o baile.

Chegando lá, dava pra entender porque esse morro tinha causado tanto problema, só rola uma entrada ou saída que te leva até uma espécie de vale, rodeado pela favela. Nos primeiros metros de subida já dava pra avistar alguns soldados de touca ninja e pistolas cromadas bradando “bota a cara Mister M!!!” pra massa de pessoas e motocicletas que subia o morro. No tal do vale, uma quadra ocupada por um Sound System maravilhoso. Um paredão da Equipe Big Mix, disparadamente melhor do que o som de qualquer boate ou casa de show que eu já visitei no rio ou em são paulo! Volume, equalização e graves perfeitos. E que grave… todas as nossas cartilagens e músculos tremiam junto com a batida do baixo. Gratis e open-air, rodeado por pessoas dançando frenéticamente ou circulando em “bondes”, cada um com sua coreografia bizarra. Do caralho, a certeza de que a Jamaica fica por aqui mesmo só que sem Reggae ou Dub, só Gun Talk.

No rio de Janeiro, o funk é o som das ruas, existem algumas rádios especializadas, coletâneas picaretas em lojas de discos ou camelôs e até um programa de televisão. Mas você não precisa tar sintonizado em nada disso pra conhecer o funk, você não pode fugir dele, o funk invade seu território de qualquer maneira, seja no último volume do som de um carro fudido circulando pelas ruas, nos gritos das torcidas organizadas, ou no assovio de um officeboy na fila do banco. É na comunidade, em frente ao paredão que tu vê que o bagulho é muito mais sério do que os modismos que pintam por aí. MCs chegam a fazer quatro apresentações por noite, o som é fenomenal, e a todo momento você acha que com uma câmera conseguiria o prêmio Esso de jornalismo, ou uma roupa de fita crepe. Porque será que os porcos são tão gordos por aqui!?

A Tati tava numa dessas neuroses de vários shows numa noite e tava atrasada, um MC subiu ao palco, disse que tinha acabado de falar com ela pelo celular. Ela tava na Baixada mas prometeu aparecer pra dar o show, até lá quem animaria o baile seria o MC G3 estilo proibidão. O Mosca tinha me arrumado um CD com os “28 melhores do proibidão” que ele tinha descolado na area dele, não dá pra arrumar esses nos camelôs porque a polícia encrenca, mas a internet tá cheio deles. Eu me lembro que a gente ficou viciado no gênero, a medida em que o Mosca trzduzia as girías e eu ria pra caralho. Quando a gente foi lá pra Bahia juntos toda vez que algum trafica ou malandro tentava acharcar avisávamos – Se liga! A gente é do rio! Lá o comando tem até trilha sonora!!!

Os sons que o MC G3 eram versões atualizadas dos clássicos do proibidão, as mesmas bases com atabaques de sempre, os samplers de rajadas e as mesmas melodias copiadas de músiquinhas pop, mas com letras atualizadas e novas intervenções. Antes de cada música, rolava um sampler de locução de rádio ou televisão, contando algum episódio recente da guerra de fações do tráfico, ficava mais ou menos assim.

William Booner: Comerciantes de todo o Rio de Janeiro fecharam as portas por imposição de traficantes do comando vermelho.

[samplers de rajadas, começa a batida]

MC G3: Quem mandou fechar!!! FOI O PODER PARALELO!!!!

Os sons ficavam cada vez melhores.

“Beira Mar Falou
Osama Sou eu!
O Celsinho morreu!
E o Uê se fudeu!!!”

“26 de Outubro! Eu fui votar! Pra governador! Fernandinho Beira-Mar!”

Baile Funk é o mó respeito, não tem essas coisas de boate de playboy onde um bêbado fortão empurra alguém ou tenta agarrar uma mina a força e abre precedentes pra uma porradaria. É super tranquilo. Essas merdas de Lado B e Lado A que você vê na televisão é só em alguns bailes onde a galera só vai pra isso. Quando rola alguma merda, é porque alguém tava envolvido em alguma merda… Ou bala perdida né? Portanto a gente tava lá seguros e animadões, secando as popozudas e nos divertindo quando vimos aquele bonde de vários “menores de 1,20m” abrirem caminho empurrando todo mundo. Quando um deles passou perto é que eu percebi o AK-47 com labaredas de fogo grafitadas na lateral, tratava-se de uma AK Hot-Rod!!!

No decorrer da noite, vimos Aks camufladas, vários outros fuzis e várias pistolas, todas empunhadas por menores neuróticos. Não que eles sejam os únicos bandidos da favela, acontece que são os únicos kamikaze o suficiente para ficar mostrando a cara pra qualquer idiota que quizer ver. Num determinado momento um menorzinho de uns dez anos com um AK maior que ele, todo remendado com Silver Tape subiu no palco e ficou dançando. Logo mais ele pegou o microfone e ficou mandando mensagens que iam desde saudações pra “galera da escola e da creche!” até ameaças pros canas que moram na favela. É nesses momentos que a gente olhava um pro outro e lembrava de todos os clipes e filmes que viu com o Snoop Doggy Dog e o Dr. DRE e começava a rir. Caralho! Quantos minutos cada um daqueles negões cheio de ouro e marra iam durar por aqui!?

- Na escolinha já tá todo mundo formando!

Dai o Racionais dá uma entrevista exclusica do YO! Cês lembram daquele quadro da MAD? Respostas cretinas para perguntas imbecis. Pois é, o Rapping Hood pergunta pro Racionais.

- Diz aê truta! Qual o conselho ’docês pra quem tá começando?

E o Mano Brown:

- Não tem essa de conselho não!!! Se ficá de pioiágem e dé milho! É PAU NO GATO!

Essas palavras de sabedoria ilustraram a viagem relâmpago que faríamos semanas mais tarde a SampaCity, mas antes de volta à mineira. Na favela o que mais têm é boteco e sinuca, um atrás do outro. ONG e rádio comunitária também sempre tem, mas só presta quando não tá na mão dos crentes. Os crentes são sinistros, construiram uma porra duma igreja dessas debaixo do meu prédio. Outro dia eu tava parado na rua esperando uma carona pra um trampo da toscographics quando percebi aquele mulão de gente rezando levantando envelopinhos brancos. Fiquei pensando se tratava-se de dinheiro, e não deu outra, o comédia que trabalha na barraquinha de cachorro quente me mostrou um desses envelopes onde lê-se mais ou menos o seguinte:

COTA DE MANÁ – “A caminho da terra prometida”
Obs.: Em caso de cheque cruzar e colocar nominal a igreja.

Depois disso fiquei sabendo que outras igrejas mais profissionais têm envelopes de cores diferente dependendo do valor do salário correspondente ao dízimo e que isso (e questões como errr… indadimplência com o senhor) o lugar onde as pessoas se sentam é diferenciado. Puta que pariu, e tem neguinho que perde tempo dizendo que maconha faz mal. Que eu é que tou errado! Este mundo tá perdido mermo…

Voltamos pra casa de manhã, o 410 parou no ponto e abriu a porta da frente direto, ninguém pagou. O chapa é o Chapa!

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