30.5.02

Hippie Hop Lapa
(uma visita ao Front)


um dois, um dois, isto não é um teste
você não é um b-boy só pela roupa que veste
se você é emecee mande uma rima que preste
grafiteiro ou pixador vai jorrar seu jet
Hip Hop é tipo respirar um ato espontâneo
cultura marginal, direto do subterrâneo
(Equipamento Precário – Inumanos)

Em 1998 o Rodrigo Brandão era um dos poucos caras que tinha drive de CD-R em casa e descolava uns trocados fazendo cópias para bandas independentes, sobretudo aos que gravavam no Hanoi, estúdio de seu pai pilotado até hoje por freaks antológicos como Salles e Perazzo. Na mesma época, visitei o cara para mostrar as fotos que tinha feito do Moebius (uma das suas bandas então, a outra era o Polux) e acabei voltando com uma cópia de “Eu Tiro é Onda”, meses antes de seu lançamento nacional, ainda sem masterização e contendo uma faixa oculta do Speed Freaks, cortada do àlbum por uns “problemas de sampler”. Na real a disney realmente se bolou com as bases de fantasia e o coro “quem tem medo do lobo mau” dos três porquinhos na mesma letra em que o ganguista de nikity city canta – sinixxxtro, sinixxxtro, ixxxto aqui tá muito sinixxtro… Sem contar o “Speed Racer” – vaaai speed!

Recentemente os Inumanos foram convidados pela Trama para participar de uma coletânea. Por um grilo de direitos eles resolveram gravar um som novo ao invés de usar um dos que já tão gravados pro seu futuro CD. Só que o DeeJay Babão se empolgou e foi além das bases e scratches cascudos e acrescentou umas frases de diverso emecees da cena nacional. Daí a gravadora diz que não rola de de correr atrás desses direitos e liberações de maneira que o som foi mesmo pra rede, virar bootleg em emepentelho. Na última fiesta cucaracha, lançamento da edição especial número 6, o Babão mandou uns scratches sobre meu compacto de “La Cucaracha” enquanto o Aori tentava adaptar um som para a ocasião – hip hop lapa, rap cucaracha… Foi massa, lá pelas tantas um gringo de NY que tava colado na nossa pista o tempo todo manifestou-se deejay e impolrou pro Babão deixar ele mandar uns riscos.

Já ouvi muito o cativante “Eu tiro é onda”, um álbum fudido gravado em casa só com samplers de discos de samba. Poucas semanas depois de tê-lo descolado fiquei sabendo da Hip Hop Rio, festa que o D2 tava promovendo no Tá Na Rua, um pico maneirissimo na Lapa, onde já asisti shows clássicos do Cabeça, Funk Fuckers, Zumbi do Mato e Acabou La Tequila dentre outras tantas bandas obrigatórias. Não tinha iluminação direito, só um spotzão que pouco se movia naquele palco baixo decorado com uma faixa gigante com um dos “velhos do planet hemp”, condições ideiais para o T-Max 3200 um filme delicioso (e carissímo) de usar. Mais tarde numa Febre da saudosa Gueto, mostrei uma sequência dessas fotos pro D2 que se amarrou e hoje uma delas ilustra a capa da coletânea “Marcelo D2 apresenta Hip Hop Rio” que tu pode comprar em qualquer banca de jornal por um trocadinho aê.

Em seu programa de rádio o Rômulo Costa depois de anunciar várias vezes que os CDs da Furacão 2000 (Tornado, Twister muito nervoso, etc.) estavam a venda à 3,99 divulga – 99% dos jornaleiros do rio são gente fina, mas tem 1% de mau-carateres que tentam vender nossos CDs a mais de 3,99. Se você descobrir uma dessas bancas pode ligar pro nosso programa, pode até dar uma bolacha no cara que depois nós vamos e cobrimos ele... – mais tarde o dono de equipe que não paga direitos autorais aproveitaria para agradecer “aos taxistas sanguebão que sempre dão carona”!

Ah! A Lapa… Lapa do Hippie Hop, Lapa de Madame Satã, Circo Voador e tantos carnavais… Na sexta dia dez centenas, talvez milhares de pessoas zanzavam de um lado pro outro pelo sem-fim de botecos e tribos. Na rua do semente rolava um baile funk open air numa ponta enquanto no outro extremo, em frente aos mosaicos da escadaria, uma banda de roquenrow fazia suas vezes lançando covers do Pearl Jam e levando a sério a máxima “Toca Raul!”. No dia 18, saltamos do latão para o macLapa – a maior cadeia de podrões do Rio – onde identificamos aquela tia que mete o bacon no ovo frito do X-tudo compReto e ainda lança um guaraná natural só por 1,50. De lá entramos na rua entre o Bar Ernesto e a Sala Cecília Meireles que desemboca na escadaria e é ilustrada pelas boêmias figuras de Noel Rosa, Madame Satã e tantos outros bambas na parede. Um camburão da polícia quase nos atropela, no seu frenético percurso até freiar poucos metros adiante, onde outros canas cinzentos cercavam o corpo magro e moreno de um fudido embigodado, com um corte vertical no percusso do abdomêm, feito por uma faca de churrasco.

Seguimos o rumo certos de que com aquelas canas todos ali seria limpeza fumar um lá em cima. Não deu outra, sequelamos na escadaraia, tentando esquecer o cadáver. Não era a primeira vez que eu tinha visto um morto na Lapa e certamente não seria a última. Mal sabíamos que em menos de meia hora, quando desciamos a rua em direção os arcos, a menos de cem metros da escadaria, seriamos atraidos para a multidão que cercava um carinha morto com um tiro na testa e outro na esquerda domaxilar. Enquanto uma coroa chocada gritava – isso é desrespeito, isso é desrespeito – uma cambada de ratos sem vergonha aproveitavam-se para roubar a carteira, os anéis e até mesmo os tênis do camelô que jazia estirado no chão coberto de massa cefálica e sangue. Tinha acabado de acontecer, alguém acercara-se, dera os dois tiros e vazára na moral…

No debate que prossegiu a exibição de “Maria Joana” do Pedro Paulo Carneiro o Yuka disse que grande parte da violência ocorre porque o moleque da favela liga uma TV que só lhe diz “Compre! Compre! Compre!”, ele pode arrumar um emprego “decente” e ganhar um miserável salário mínimo ou descolar essa grana marcando uma noite na boca. Mas ninguém faz freela pra boca, é um negócio que te obriga a deixar tudo pra trás pra embarcar, mas que também atrai toda essa molecada por dar-lhes uma identificação, se antes tu não era nada, agora tu é um “produto”, agora tu é comando! E é a respeito disso que o traficante em forma de GIJOE na capa do instinto coletivo se refere.

A Hip Hop Rio que já rolou do Jacarézinho à São Conrado toma forma toda quinta feira na Bunker, revezando ecletismo pop do Pachú com algum grupo ou vitrolista renomado convidado para dar o sabor underground. Na primeira noite foi a vez do KL Jay destruir a pista com seus Riscos e Viradas cavernosas ocasionalmente acentuadas por breves comentários em paulistês com a simpatia de quem já apresentou muito YO!MTV! (ok! Todos sabemos que Thayde é bem mais estaile nisso). Depois de me esbaldar de dançar, fazer a cabeça e me bolar ao ver os B-Boys passando mal de rodopiar num mix de electro e miami bass pancadélico que tanto tem a ver com esta cidade vazei da boate pra beber a cerveja mais barata do lado de fora e tentar descolar alguma larica à base de catupiry.

Tava tarde (ou melhor, cedo) pracaralho e eu dou de cara com o D2 esperando o KL Jay terminar seu podrão para voltar lá pra dentro. Fiquei bebendo minha cerveja e jogando conversa fora, sem dar muita bola pra discussão que dois playboys (cada um acompanhado de uma mina) armavam do outro lado da rua por causa de um carro mal estacionado ou qualquer idiotice do tipo. Não demorou pros dois começarem a brigar patéticamente feito dois bebuns. Logo um conhecido segurança particular (dono de uma dessas empresas que locam trogloditas pra eventos) larga as minas que babavam seu ovo na entrada da boate e atravessa a rua empolgadissímo sacando sua pistola automática com silenciador e o caralho.

– Ih… Treta meu! – foi a primeira reação do Deejay paulistano cheio de maionese na boca.

Os seguranças encostaram os playboys na parede e deram-lhes uns sacodes enquanto os revistavam, quando viram que nenhum dos dois estavam armados deram um esporro, largaram os caras meio quebrados na calçada e voltaram pro clube. A adrenalina dos putos era tão grande que eles retomaram a briga, de joelhos, segurando a gola da camisa do outro com uma mão e socando a cara com a outra, espetáculo que tu não curte nem no Ultimate Fight Championship – puta perobagem do caralho diga-se de passagem. O chefe de segurança da casa, um manézão que até então me tratava como merda por ter-me flagrado mais de uma vez em atos ilícitos dentro do clube aproxima-se e é questionado pelo Marcelo.

– O que que aconteceu com o esponja!? Aquele baixinho que fazia a segurança aqui!? Porra! Aquele que era foda! Não tinha pra ninguém, quebrava qualquer um na mão – empolgou-se D2 para o indiferente troglodita. Notando a desatenção, e a inveja do novo chefe dirigiu-se devolta para mim e o KL Jay – Porra! Esse cara era sinistro! Uma vez tinham três pitboys de orelha deformada sacaneando e ameaçando bater num magrelo com camiseta do Nirvana. Era certo do cara apanhar, daí esse Esponja saiu daqui de dentro do nada, correu pra rua e quebrou os três caras sozinho!

Eu já tinha visto esse cara em ação. Ele era deveras perturbado mas competente, devia ter suas próprias razões para detestar os playboys e manifestar-se sempre desconfiado com todo mundo, mas certamente era um cara mais tranquilo e autocontrolado do que a legião de imbecis que seguiram a sua gestão. Certa vez, era uma manhã de verão e todos os botecos na porta da boate estavam abertos quando esse cara saiu de lá de dentro conduzindo um Play com uma chave de braço nas costas e então arremessá-lo pra rua. O sujeitinho, provavelmente expulso por ter arrumado alguma confusão lá dentro começou a discutir e meter o dedo na cara do Esponja que ficou encarando-o devolta, silenciosamente, estendendo a cara mais pra frente do corpo e mantendo as duas mãos cruzadas para trás. Quando o playboy tentou atacar o segurança (que estava meio que pedindo nessa posição), este esquivou-se sagazmente e com um só soco nocauteou o Play que desmontou no chão feito pecinhas de Lego. Dois de seus subordinados se encarregaram de largar o fudido, com a testa ensanguentada num taxi.
O chefe de segurança de hoje em dia têm bem menos estilo, não passa de um gordão bundão sempre implicante com os cannabistas magrelos como eu, nesse dia no entanto resolveu manifestar-se de maneira diferente, falando alguma besteira sobre como a boate é normalmente e virando pra mim e confirmando – Esse daí sabe! Tá sempre aqui!! – ao mesmo tempo que sorria e dava aquela batidinha nas minhas costas. Desde então o cara passou a me comprimentar e tratar bem. Claro! Passei da categoria de magrelo fudido pra “amigo do dono da festa”… Não dá pra entender essa gente mesmo…

A Hip Hop Rio da Bunker é certamente uma experiência. Têm aqueles boys de camisão Fubu, faixa old-school na cabeça e grosso cordão de ouro, eles cantam a porra toda mas não tem suingue nenhum, limitando-se a gesticular com as mãos e fazer uns passinhos decorados mediocres. Tem uns angolanos figuraças espichadões que colam nas minas e ficam dançando bem sexualmente com ou sem o concentimento delas. Têm até ex-Straight Edge caído convertido à cultura do Açai. Tem também aquelas mulatas de tranças embutidas roçando as costas fortes e retas em você e todo um espectro de menininhas descoladas e bem nascidas de classe mérdia, daquelas que pintam no afroRio atrás dos negões de farmácia ao estilo Toni Garrido. E tem é claro todos os Emecees, grafiteiros, breakdancers, deejays, zineiros, músicos, roadies e produtores que tornam esta cidade a gostosa bizarria miscelânea que é.

Numa outra festa o D2 botou uma mina pra fazer Strip Tease ao seu lado enquanto cantava uma música nova (boa!) que ninguém consegiu prestar muita atenção. Em outra edição rolou um som inédito do Mr.Catra, outro que também tá sempre lá, mesmo depois de aporrinhações por causa de uma mutuquita. Som bem evoluído, com bases bem feitas e originais sempre fincadas em ponto de macumba e com aquelas letras que só quem convive entre o pretencionismo miltante do hip hop e o banditismo sagaz do funk consegue bolar. Gente de bem e gente do mal, mas sempre a garantia de cruzar com pessoas em tua sintonia.

A Lapa é diferente, é mais popular, mais barulhento. Nas sextas e vésperas de feriados, configura-se lá uma Zona Autônoma onde todos fumam, fodem, cheiram e até matam. Palcos são montados pirateando energia dos postes na cara dura e não existe lei do silêncio, até porque a vizinhança é composta em maioria de hotéis suspeitos e cabeças de porco. Os carros não se atrevem a entrar na rua, até porque demoram horas para atravessá-la, e ocasionalmente servem de porta-copos ou assentos. Um astral de respeito converge as pessoas de diferentes lugares e idéias; dreads e moicanos, batas e adidas. Um caos diferente da “segunda sem lei” do Baixo Gávea, que mesmo sob tradição boêmia, prende-se à patrulha burguesa, que não pode ver seus jovens de classe mérdia subvertendo o ambiente junto com o povo das ruas. Pelo menos não debaixo do seu nariz… A Lapa, no coração da cidade, à uma linha de ônibus de praticamente qualquer lugar é um canto maltratado do rio antigo, cuja boemia não foi restaurada como nas capitais nordestinas onde seus “portos” (a Lapa já foi de cara pra praia) transformaram-se em sofisticados e coloridos complexos de entretenimento. Na Lapa tudo continua como sempre foi, podre, largado e marginalizado. Grafites embelezando os monumentos históricos, travestis de corpos esculturais armados até os dentes e palcos maravilhosos, para todas as atrações. A Lapa está voltando a ser a Lapa…

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